Inaugurar um texto nesta comunidade tão comprometida com importantes causas étnicas, fez com que eu buscasse as mais profundas raízes mitológicas do povo africano, formador base de nossa civilização brasileira e de nossa cultura.
Escolhi um ícone da literatura de Moçambique, Mia Couto, escritor profundamente ligado às tradições de seu povo lutador, como cada um de
nós.
A VARANDA DO FRANGIPANI
de Mia Couto
Aos pés da árvore do frangipani está enterrado um homem que precisa ser lembrado como herói por Moçambique. Morto durante a guerra pela libertação, contra os portugueses, um carpinteiro recebe uma proposta para tornar-se “xipoco”, ou seja, uma espécie de fantasma “exilado da luz”; irá ele acompanhar o corpo de um policial contratado para desvendar um crime e que será assassinado em sete dias. Esse é o tempo que o morto terá para experimentar as mais variadas sensações de quem não está vivo, mas colado à alma de outrem.
É nessa atmosfera de mistério e magia que o romance do moçambicano Mia Couto se desenvolve. Às margens de um rio, sob o encanto do aroma das flores do frangipani e contando com a companhia de um animal nada menos misterioso e místico, um tamanduá africano, halakavuma, que assumirá a postura do alter-ego do personagem, acontecerá a narração da saga do carpinteiro.
A trama é inusitada, passa pelo ambiente de magia que colore os tons terra de Moçambique; a linguagem de Mia ultrapassa a narração, a prosa e trilha o caminho da filosofia e da poesia, com construções de beleza incomparável, metáforas que nos remetem à nossa ancestralidade, nos impelem às reflexões ontológicas mais profundas e a questionar o modo como o mundo moderno trata de seus idosos, além de levantar os controversos temas da guerra, dos campos minados, da miséria da África recém liberta, em 1975, do colonizador português.
É impossível ler A Varanda do Frangipani sem fazer uma profunda relação com os contos agrupados no livro Primeiras Estórias, de Guimarães Rosa, denominado por ele “um manual de metafísica”. Os neologismos nascidos da inventividade profícua de Mia Couto nos remetem aos textos de Guimarães: Termos como “ganhou gravidades”, “remorrer”, “fazível”, ou ainda construções frasais de beleza quase incompreensível pela razão “Da prisão da cova eu transitava para a prisão do corpo (...) em aptidão de ser flor”, fazendo uma analogia entre o ritual de sepultamento e o plantio de uma flor.
É possível ainda identificar frases que trazem uma moral da história, um ensinamento, como nas histórias do Decameron (1353), de Giovanini Boccaccio ou ainda no The Canterbury Tales (1386), de Geoffrey Chaucer, como: “a força do crocodilo é a água”, ou “Os mortos devem ter a descrição de ocupar pouca terra”, ou “Tudo começa antes do antigamente”, um apelo à preservação das tradições, à sustentação da cultura e origem de um povo, ou “De tudo, enfim, a tristeza tem artes de fazer música”, ou “O que se encontra nessa vida não resulta de procurarmos”, enfim, tantos são os exemplos de frases/ditos, que o livro está todo ele mergulhado num oceano de poesia e mistério.
A Varanda do Frangipani é um elaborado tratado sobre a existência, além de uma arquitetura lingüística em língua portuguesa somente comparável à Guimarães Rosa e mundialmente ao compromisso de Shakespeare com a construção da Língua Inglesa.
Como o povo do nosso Brasil, o povo irmão de Moçambique resiste às adversidades sociais e históricas e mantém intactas as mais profundas tradições de seus (nossos) ancestrais.
O leitor, envolvido nesse emblemático romance, anseia pelo desfecho do crime, espera aflito pelo regresso do personagem ao mundo dos mortos... E assim ficamos entre ser ou não ser parte integrante de uma história em que “todo ser é tão antigo quanto a vida”, mas não tão completo quanto a morte.
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Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Foi jornalista e atualmente é professor e biólogo. Seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio Ferreira, pelo conjunto de sua obra.
Rita Alves nasceu no Brasil, em São Paulo, em 1966. É Historiadora, com formação em Letras e Artes. Atualmente escreve para revistas dos 8 países de Língua Portuguesa, além de fazer curadoria de artes plásticas. É poeta. Lançou livro de ensaio sobre Padre Vieira e em breve lança o “Tela de Letras”, de poemas.
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