Interpreta trilha de Milton Nascimento
Em 1999, o coreógrafo Rui Moreira estava de bobeira na França. Envolvido com projetos profissionais em Lyon, resolveu dar um pulinho no sul do país, na pequena e simpática cidade de Vinne, para conferir tradicional festival de jazz. Esbarrou por lá com ninguém menos que o cantor Milton Nascimento e, aproveitando a oportunidade, falou a ele de um projeto em que há tempos trabalhava. De galhofa, o co-autor de Coração de estudante propôs: “Quem sabe a gente um dia não trabalha numa trilha juntos?”. Oito anos depois, a troça materializou-se numa parceria que pode ser conferida com o projeto Q`eu disse, espetáculo da companhia de dança mineira SeráQuê?, em cartaz até o dia 24 no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). “Ele foi bastante receptivo e, abrindo espaço em sua concorrida agenda, trabalhou, com sua equipe, numa trilha que acabou por influenciar na proposta estética do projeto”, conta Moreira, bailarino e diretor do espetáculo que estreia em circuito nacional em Brasília. “A trilha sonora composta pelo Milton permeia a montagem o tempo todo e é simplesmente linda, com suas sofisticadas entoações jazzísticas e indígenas”, elogia. Segunda parte de trilogia que busca resgatar a identidade da cultura afro-brasileira a partir dos festejos populares carregados de forte sincretismo, Q`eu disse baseia-se em extenso, exaustivo e ímpar trabalho de pesquisa. Paulista de nascimento, Moreira, ex-bailarino do conceituado Grupo Corpo, acolheu Belo Horizonte, cidade onde mora desde 1984, como importante campo empírico para seus estudos. “Praticamente já tenho a cidadania mineira”, brinca. Na procura de material que pudesse enriquecer sua pesquisa antropológica, o coreógrafo percorreu recônditos de Minas Gerais. Deparou com manifestações culturais como as tradicionais folias, passou por comunidades indígenas e quilombolas. O resultado é destrinchado num produto estético que mistura dança, teatro e música. “O fato de ser `estrangeiro` me possibilitou ser apresentado a elementos da cultura local que são distintos para as pessoas daqui. Interessante como, mesmo arriscando ter um ponto de vista equivocado, tendemos a valorizar as coisas às quais as pessoas locais não dão tanto valor”, observa. Iniciada em 2007 com Ês quis, a trilogia enfatiza nos títulos a seriedade dessa investigação, ao trazer à tona expressiva sonoridade de dialeto da língua portuguesa, o “mineirês”, acentuando as influências de origem banto, que remete aos povos africanos vindos de países como Angola, Moçambique e parte do Congo. O diálogo com o universo lingüístico de Guimarães Rosa é sintomático. “Todos esses movimentos populares são heranças africanas no Brasil e, assim como a cultura indígena, estão na periferia da sociedade, em busca de aceitação social”, destaca. Se com Ês quis Moreira traz à luz as origens dessas manifestações, Q`eu isse aposta num discurso mais politizado, com foco social. “O espetáculo tem como pesquisa um tom regional forte, mas também faço um passeio universal sobre a questão”, esclarece Moreira, que recorreu ao ator e diretor Adyr d’Assumpção para trabalhar no roteiro do espetáculo. O figurino e o cenário são assinados por Bia Lessa. “A dança é uma expressão artística subjetiva e, neste espetáculo, era preciso objetivar os temas apontados. Daí essa narrativa teatral não-linear, mas com histórias contadas”, aponta. “Já o cenário e o figurino trazem elementos inanimados que dão vida e signos aos movimentos”, acrescenta. No palco, 10 bailarinos atuantes – entre eles, o próprio Rui Moreira – sugerem gestos que, de uma forma ou de outra, enfatizam o intenso trabalho de pesquisa sobre manifestações culturais e sua luta pela sobrevivência diante da modernidade. “Não colocamos de forma explícita nenhuma dança dessas culturas”, avisa Moreira. “Os bailarinos são pessoas que têm origem humilde e que, tal qual essas expressões populares, buscam seu espaço, sua ocupação dentro do processo de identificação de valores”, resume.
FONTE : Lúcio Flávio do Correio Braziliense
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